sábado, 5 de março de 2011

A maravilhosa Ilha dos Amores


Canto IX, estâncias 54-84

Análise

A primeira parte do texto vai do princípio até ao fim da estrofe 63. Nesta parte descreve-se a maravilhosa ilha de Vénus. A segunda parte vai da estrofe 64 até ao fim e trata do espanto dos navegadores perante a visão inesperada das ninfas, das reacções maliciosas (mas aparentemente ingénuas) destas e da sua convivência com aqueles.
O poeta mostra-no primeiramente, na estrofe 54, três outeiros, lá em cima, donde a água límpida das fontes corre alegremente para o vale ameno (est. 55) onde as correntes se juntam, formando um lago (como uma mesa) sobre o qual o arvoredo se debruça reflectindo-se também nas águas cristalinas. Sucedem-se, depois as árvores de fruto em geral (mil árvores com pomos...) e algumas em particular, como a laranjeira, a cidreira, o limoeiro (est.56). Vêm a seguir (est.61) as plantas ornamentais, primeiro em plano geral, as flores, cujas cores igualam em beleza as da aurora, depois em planos particulares, as violetas, o lírio, a rosa, a cecém (açucena), a manjerona, o jacinto, as boninas (est. 62). Finalmente (est. 62-63) surgem os animais, primeiro em plano geral (as aves no ar, os animais no chão), depois, em planos particulares (o cisne, a filomela ou rouxinol, a lebre, a gazela) e, regressando a um plano geral: o leve passarinho.
Nota-se, portanto, nesta parte do texto, uma disciplinada estruturação das ideias (como é próprio dos clássicos) e uma gradação ascendente na importância dos seres enumerados: natureza física (outeiros e vales -> natureza vegetal (árvores e flores) -> natureza animal (animais aquáticos, aéreos e terrestres). já vimos, pelo desenvolvimento do assunto, que estes três grandes planos se subdividem ainda em planos mais ou menos gerais e particulares. Note-se que os três grandes planos (físico, vegetal e animal), se continuam em gradação ascendente na segunda parte do texto, com a intervenção dos navegadores e das deusas (plano humano e plano divino). O conjunto do texto reflecte, pois, a ordem e a harmonia de um cosmos hierarquicamente organizado: o físico -> o vegetal -> o animal -> o humano -> o divino. Esta harmonia traduzida na irmanação de mundos diferentes é ainda sugerida pela animização ou personificação (formosa ilha alegre, a sonora linfa fugitiva, arvoredo gentil pronto para afeitar-se, os formosos limões virgíneas tetas imitando a fresca rosa que reluz nas faces da donzela, a cândida cecém, das matutinas lágrimas rociada, pintando estava ali o Zéfiro e a Flora). Esta tentativa de associar o mundo vegetal ao animal e humano completa-se, na segunda parte do texto, com a associação do mundo humano ao divino, na exaltante convivência dos navegadores com as ninfas. Tudo isto se orienta à glorificação dos homens, que se tornaram heróis, pela façanha realizada. Está bem dentro do espírito renascentista esta visão cósmica do mundo cujo centro é ocupado pelo homem, o qual, pelo domínio dos elementos físicos, se tornou igual aos deuses.

O evoluir do assunto, partindo do mundo físico, passando pelo mundo vegetal e animal, até ao mundo humano, a mudança contínua de planos (dos mais gerais para os mais particulares), aspectos já focados anteriormente, bem como a animização da paisagem mediante personificações (também apontadas atrás), são processos que dão à mensagem um notável impressionismo. Mas o que dá maior visualidade à linguagem da primeira parte do texto é a expressividade de certas palavras (sobretudo adjectivos) e expressões: formosos outeiros com soberba graciosa; de gramíneo esmalte (metáfora); formosa ilha alegre e deleitosa; claras fontes e límpidas; verdura viçosa; sonora linfa fugitiva (dupla adjectivação que associa a sensação sonora ao movimento); vale ameno; claras águas; mesa tão bela quanto pode imaginar-se (comparação hiperbólica); arvoredo gentil (personificação); o cristal resplandecente (metáfora - a água é um cristal que está pintando, ou reflectindo o arvoredo); pomos odoríferos e belos; a laranjeira tem no fruto lindo a cor que tinha Dafne nos cabelos (a comparação não hiperboliza apenas a beleza das laranjas, mas também o seu gosto, pois assim como os cabelos de Dafne excitavam os desejos do seu amante Apolo, também a beleza das laranjas excita o nosso paladar); formosos limões virgíneas tetas imitando; fugace lebre; tímida gazela; leve passarinho. O uso dos tempos verbais (presente e imperfeito) conferem também visualidade à linguagem, pois um e outro apresentam a acção a decorrer (no presente, ou no passado), como se pode observar no exemplo: a laranjeira tem no fruto lindo a cor que Dafne tinha nos cabelos. Esta sugestão do fluir do tempo é ainda dada pelo gerúndio e pela perifrástica: vendo-se, está pintando, estão subindo, está caindo, estão imitando, pintando estava, cantando voam (o aspecto durativo está tanto no verbo cantar, como no voar).

Na segunda parte do texto (64 a 84) nota-se uma nítida sensação de movimento, dada sobretudo pela mudança de espaços focados. O poeta foca alternadamente os navegadores e as ninfas, que, no princípio, ocupavam espaços diferentes. Há, portanto, a sequência alternada de dois planos de descrição: o plano dos navegadores e o plano das ninfas. Só a partir da estrofe 70 é que os dois planos se confundem na coabitação de navegadores e ninfas.
Mesmo em cada um dos dois grandes planos focados, há ainda subplanos, isto é, distinção de espaços menores, sugeridos pelas formas pronominais (deíticas): alguas... alguas... outras; alguns... outros; de ua... ua; outros... tal; uas... outra... Se um cineasta fizesse a filmagem destas cenas, teria de estar continuamente a mudar a focagem da sua objectiva ou usar mesmo várias câmaras. Já se vê, portanto, a razão por que esta descrição-narração nos dá tão claramente a sensação do movimento. O dinamismo do texto é ainda conseguido pela intervenção humorística de Veloso: Senhores, caça estranha é esta... sigamos estas deusas... E as ninfas provocam uma espécie de jogo das escondidas com os navegadores, veloces mais que gamos... fugindo as ninfas vão por entre os ramos, mais industriosas que ligeiras, sorrindo e gritos dando, se deixam ir dos galgos alcançando. Enfim, um movimentado jogo galanteador de aqui te apanho ali te deixo entre homens e deusas.

É admirável a psicologia feminina posta aqui à prova, com o objectivo de dar cumprimento à recomendação de Tétis: que se fizessem primeiro desejadas. Daí o facto de andarem dispersas pela floresta, como incautas, fingindo que seguiam animais, fugindo por entre os ramos, mas mais industriosos que ligeiras... sorrindo e gritos dando, se deixam ir alcançando... Daí o facto de se deixarem cair de propósito, de se mostrarem nuas e logo se cobrirem, para não se revelarem demasiadamente atrevidas. Estas belas divindades surgem-nos aqui como uma espécie de confluência do sensual com o espiritual; do humano com o divino.

1 comentário:

mfc disse...

Adoro este tipo de imagens!
Quando miúdo a minha imaginação crescia ao vê-las!