terça-feira, 24 de maio de 2011

No meu mundo...


A caminho da escola, a cantar com o rádio, o sol a aquecer-me através dos vidros… Tudo prometia um bom dia de trabalho, pois a boa disposição viajava comigo, acompanhava-me e eu não a deixaria partir… Estava comigo e comigo ficaria…

Deixei o carro um bocadinho longe da escola, porque ainda era cedo, e saí ainda com a melodia límpida a embalar-me os passos.

Eu ia a subir, ele vinha a descer…

- Hei, a escola é para ali, vais enganado… - disse-lhe a sorrir.

- Não, não vou, vou para casa arranjar as coisas e vou fugir… - repondeu-me.

Estaquei à sua frente, olhei-o nos olhos e senti que dizia a verdade, que estava decidido.

- Estás a brincar – balbuciei - vais é já à minha frente para a aula. Não vais faltar à minha aula mesmo nas minhas barbas.

- A professora não manda em mim, acha que vou fazer o que me está a dizer.

- Primeiro vais às aulas, porque é lá que deves estar agora, depois se ainda quiseres fugir é lá contigo. Agora vais comigo para a aula, porque a partir de agora e até as aulas acabarem estás à minha responsabilidade.

- Ó professora, eu tenho de fugir antes de a minha mãe sair do trabalho.

- Tens muito tempo, ela trabalha até tarde.

Esta minha resposta desarmou-o, ele sentiu que eu não estava ali para impedir a sua fuga, só estava a adiá-la umas horas.

Caminhámos os dois, lado a lado, e eu fazia um esforço medonho para não fazer perguntas. Comecei a falar do tempo, do sol que estava quentinho, das nuvens claras que se viam no céu, da música que vinha a ouvir no rádio…

- Professora, não quer saber?

- Eu só quero saber o que me quiseres contar…

- Sabia que desde o Natal que estou a viver com a minha tia?

- Não sabia.

- Eu estava para fugir de casa e a minha tia disse-me que podia ficar com eles lá em casa.

- Então e agora queres ir embora de casa da tua tia?

- Não. A minha mãe exigiu que eu voltasse para casa e eu não quero ir. Ela disse que ia hoje buscar-me a casa da minha tia, se eu não estivesse ainda lá em casa, quando ela voltasse do trabalho. Por isso, tenho de ir buscar as minhas coisas e fugir.

- E o teu pai continua em Espanha? Ele sabe que estás em casa dos teus tios.

- Ele sabe e continua em Espanha, se ele estivesse cá, eu não tinha saído de casa.

- E estás a pensar fugir para onde?

- Não sei, tenho… é… de não estar em casa da minha tia e tenho de ir lá buscar as minhas coisas.

- Mas se gostas de estar com os teus tios, diz isso ao teu pai e pede-lhe que fale com a tua mãe. Ou então, os teus tios podiam falar com o teu pai…

- Não vale a pena, professora!

- Claro que vale, vale sempre a pena!

- Ó professora, se eu lhe der o número da minha tia, fala com ela e diz-lhe para falar com o meu pai.

- Está bem.

O rosto dele floriu num sorriso agradecido.

Chegámos à escola, combinámos telefonar à tia no intervalo, depois de todos os alunos saírem da sala.

A aula correu bem, mas a minha cabeça estava a mil, ia ditando os exercícios para o quadro e ensaiando mentalmente um discurso…

Todos saíram e ele aproximou-se de mansinho.

- Telefona mesmo, professora?

- Diz lá o número…

Falei, falei, falei… No fim, a tia ficou de ligar para me dizer a decisão do pai…

- Agora, tu vais para a aula e eu vou dar apoio a uns alunos. Depois da aula vais ter comigo à sala 19.

- Não tenho cabeça para ir ter Matemática.

- Tens de ir, vai lá.

Vi-o afastar-se com a cabeça enterrada nos ombros, pesada…

A tia telefonou 45 minutos depois, tinha falado com o pai do garoto e estava tudo resolvido. Teria de ir à escola, pois ficara decidido que passaria a ser ela a Encarregada de Educação do Marcelo.

- Professora, então tenho mesmo de fugir, não é?

- Claro que não, já está tudo resolvido.

- A minha mãe deixa-me ficar com os meus tios!?

Assenti.

Agarrou-me e desatou a gritar e a andar comigo à roda: A DT é a maior.

A funcionária do piso apareceu aflita, pois pensou que o miúdo acabasse por me magoar ou por me atirar ao chão. Ele parou e perguntou-me de repente:

- Posso dar-lhe um beijo, professora.

Nem esperou a resposta, depois virou-se para a funcionária e pespegou-lhe um beijo na face.

E largou a correr a cantarolar a mesma canção que embalou a minha chegada à escola. Sorri, o dia começou bem… e… terminou da melhor maneira!

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