quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Ao Gás - Cesário Verde


AO GÁS

E saio. A noite pesa, esmaga.
Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras

Um sopro que arrepia os ombros quase nus.


Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso

Ver círios laterais, ver filas de capelas,

Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,

Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo

Resvalam pelo chão minado pelos canos;

E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cutileiro, de avental, ao torno,

Um forjador maneja um malho, rubramente;

E de uma padaria exala-se, inda quente,

Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.


E eu que medito um livro que exacerbe,

Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;

Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.


Longas descidas! Não poder pintar

Com versos magistrais, salubres e sinceros,

A esguia difusão dos vossos reverberos,

E a vossa palidez romântica e lunar!


Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!

Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,

Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.


Desdobram-se tecidos estrangeiros;

Plantas ornamentais secam nos mostradores;

Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,

E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.


Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;

Da solidão regouga um cauteleiro rouco;

Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.


"Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,

Meu velho professor nas aulas de Latim!


Cesário Verde

Este poema desenvolve-se acompanhando o deambular do sujeito poético pelas ruas da cidade - "Passeios de lajedo", "as embocaduras", "Cercam-me as lojas" - num determinado período do dia, a noite - "A noite pesa, esmaga".

Ao longo do poema há referências a determinados tipos sociais: as impuras, as burguesinhas, a mulher "magnética" ("a lúbrica pessoa") e a velha de bandós constituem o leque feminino de personagens; a par, surgem outras figuras como o forjador, o "ratoneiro imberbe", os caixeiros, o cauteleiro e o "velho professor" de latim, agora um pobre pedinte.

Das várias figuras femininas referidas neste poema, a mulher "magnética" é talvez a que permite estabelecer mais aproximações e mais pontos de afastamento com outras figuras femininas da imagética cesariana. Assim, pela sua sensualidades, mas ao mesmo tempo pelo seu estudado distanciamento, ela aproxima-se da milady de Deslumbramentos; a sua futilidade coloca-a no pólo oposto ao das mulheres do povo tão frequentes em Cesário Verde: a hortaliceira de Num Bairro Moderno, as peixeiras de Cristalizações, a engomadeira de Contrariedades.

Este excerto constitui uma espécie de súmula de alguns dos temas fulcrais da poesia de Cesário Verde. Assim, para além da variedade de figuras femininas presentes, as outras "personagens" ora são um meio de o poeta expressar a sua solidariedade pelos excluídos (o velho professor de latim), ora um meio de concretizar a pintura da cidade, que aqui aparece, como é constante nos poemas de Cesário, como símbolo de dor, sofrimento, solidão, até de vencidismo - "Mas tudo cansa!". Por oposição, surge, implicitamente, uma ténue alusão ao campo, modelo de saúde, vida, força - "Um cheiro salutar e honesto a pão no forno". Finalmente, dever-se-á ainda referir a fuga imaginativa presente na segunda estrofe ("Eu penso / Ver círios laterais, ver filas de capelas...") e na décima estrofe ("Tornam-se mausoléus as armações fulgentes").

Todo o poema e toda a descrição da cidade assentam numa sucessão de sensações, desde as tácteis ("Um sopro que arrepia os ombros quase nus"), as auditivas ("...ao chorar doente dos piao"; "Da solidão regouga um cauteleiro rouco"; "Pede-me sempre esmola"), as olfactivas ("exala-se, inda quente / Um cheiro salutar e honesto a pão no forno"; "Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores") ao claro predomínio das visuais ("E a vossa palidez romântica e lunar!").

Alguns críticos literários consideram O Sentimento dum Ocidental uma espécie de epopeia de sinal negativo. Uma epopeia é um texto que enaltece um herói ou uma realidade. Ao longo deste poema, há uma personagem principal enaltecida: a cidade; o poeta, porém, canta-a não como convencional heroína épica, mas num tom de desencanto, de melancolia, de evidente vencidismo. Assim sendo, é lógico que este texto de Cesário Verde possa ser considerado uma epopeia, pois todo ele se estrutura em torno dessa realidade (a cidade), mas esse canto acaba por ser negativa, porque o tom que dele se desprende é de clara melancolia.

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