terça-feira, 18 de outubro de 2011

Fernando Pessoa - Características da poesia Ortónima



O fingimento artístico


Para Pessoa, o objecto artístico não reflecte a realidade do criador no plano das emoções - é esse o sentido dos versos do famoso poema intitulado "Autopsicografia", "O poeta é um fingidor", pois o acto de escrita pressupõe um processo de intelectualização da emoção que é necessariamente filtrada pela própria escolha que o poeta faz das palavras e da organização destas, no poema.
Pessoa compara a ideia de "transformação" da percepção, nas suas várias sequências até à realização do poema, ao trabalho alquímico:

"O génio é um alquimista. O processo alquímico é quádruplo: 1) putrefacção; 2) albação; 3) rubificação; 4) sublimação. Deixam-se, primeiro, apodrecer as sensações; depois de mortas embranquecem-se com a memória; em seguida rubificam-se com a imaginação; finalmente, se sublimam pela expressão."

O apodrecimento das sensações surge no momento em que o poeta se propõe escrever - ele lembra-se, então, daquilo que sentiu (através da memória), imagina esses sentimentos, escolhendo as palavras, a sua organização no poema e a expressão final das emoções já não é a emoção, mas aquilo que o poeta julga ter sentido (ou poderia ter sentido) e que tentou traduzir na sua obra. É esta associação da poesia à alquimia, em que se transformam os metais vis num metal nobre, o ouro, que encontramos na primeira quadra do poema já referido e que coloca a questão da sinceridade em Fernando Pessoa.
A inteligência (que, para o alquimista, seria o metal nobre) deverá filtrar a emoção que, muitas vezes, é convencional (sentir alegria ou tristeza em relação a algumas situações é um fenómeno cultural que se liga às crenças de uma determinada sociedade).
A produção literária implica, para o poeta, a tensão sentir/pensar e o texto é um produto da imaginação, ou seja, a dor fingida pelo poeta, aquando do momento da escrita, em que a emoção é intelectualizada (recordação da dor real); não se trata da dor que o poeta sentiu, de facto, mas da dor que este imagina ter sentido.

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.


Por outro lado, o leitor, que recria o poema lido, de acordo com a sua subjectividade, imagina essa dor.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.


O que está em causa, para Pessoa, é a destruição do conceito romântico de inspiração, que o poeta modernista substitui por imaginação, concebendo a escrita como linguagem.
A sinceridade artística é, assim, uma depuração da emoção através da imaginação e de um processo de intelectualização que se relaciona com a essência do labor poético.


A dor de pensar

O pensamento é a faculdade que permite ao ser humano ter um conhecimento intelectual do universo que o rodeia. Porém, a inteligência culmina, para Pessoa, na constatação de que, efectivamente, é impossível ao ser humano alcançar o conhecimento absoluto e provoca, no poeta, a "dor da "universal ignorância"" que obsta à sua felicidade, pelo reconhecimento das limitações que caracterizam a nossa espécie.
Fernando Pessoa vive a dicotomia que consiste na necessidade de percepcionar o mundo de forma racional, inteligível e a certeza de que essa forma de captação do real não lhe permitirá desvendar o segredo, a razão da existência da realidade que se apresenta ao ser humano, de acordo com a sua capacidade de percepção dessa mesma realidade, o que provoca o seu sofrimento e a sua angústia metafísica.
Apesar de reconhecer que só a ausência de interrogação conduzirá à felicidade, porque o conhecimento da essência das coisas é inacessível, Pessoa não renuncia à sua lucidez, ainda que tenha consciência de que a questionação e a capacidade analítica não o conduzirão à verdade. É esta evidência que surge no célebre poema "Ela canta, pobre ceifeira".

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz (...)

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
(...)

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse

Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.

Representando o instinto, a ceifeira, associada ao canto natural da ave, sente a plenitude que advém da felicidade de existir sem recorrer à interrogação e à consequente intelectualização das percepções e dos sentimentos.
É a incapacidade de ter a inconsciência da ceifeira e, portanto, a sua alegria, que motiva o pedido do poeta, enfatizado pela utilização do modo imperativo e pela frase do tipo exclamativo.

(...)
Derrama no meu coração
a tua incerta voz ondeando!

A expressão do desejo do sujeito poético de ter a inconsciência da ceifeira, que canta "como se tivesse / Mais razões pra cantar que a vida", mantendo, porém, a consciência da sua inconsciência, ou seja, não abdicando da sua capacidade de racionalização e da sua lucidez surge nos versos seguintes:

Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso! (...)

Pessoa escreveu outros poemas em que a temática da dor de pensar está subjacente à construção do sentido das composições poéticas.

No poema "Gato que brincas na rua", a felicidade do gato é associada ao instinto, pois este é o princípio "das leis fatais / Que regem pedras e gentes". Sentir opõe-se ao acto que leva o poeta a ver-se, ou seja, à autoconsciência, sinónimo de perda da identidade: "Eu vejo-me e estou sem mim, / Conheço-me e não sou eu."

No poema "Cansa sentir quando se pensa", a dor de pensar resulta da ausência de respostas, o que motiva a solidão ontológica, simbolizada pela "noite", pelo "negro astral", pelo "silêncio surdo", pelo "frio", pelo "negror sem fim" e pelo "silêncio mudo", e origina a incapacidade do sujeito poético de aceitar a sua própria condição humana, porque o conhecimento é algo interdito ao Homem.

Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa (...)

Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.

(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo -
Ah, nada é isto, nada é assim!)

O poeta só encontra silêncio na sua demanda. Porém, o verso final deste poema traduz a sua certeza de que existe uma realidade para além daquilo que lhe é permitido percepcionar, o "informe real", numa reminiscência da tradição platónica que estabelece a dicotomia entre o mundo da aparência e o mundo da essência.

A poesia de Fernando Pessoa ele-mesmo reflecte, essencialmente, a preocupação com o mistério da existência. Pessoa acredita num mundo para além do mundo das aparências, o que o leva a encarar as realidades perceptíveis pelo ser humano como irreais, como uma ilusão. A própria vida é, para, ele, um sonho. O poeta acredita que existe uma vontade superior ao Homem, que constrói o seu destino e que tudo harmoniza segundo uma paralógica que escapa ao ser humano. A vida na terra é encarada como uma vivência necessária, para se estabelecer uma harmonia que não temos capacidade de captar. O pressentimento da existência do mistério que envolve o mundo sensível, aliado à constatação do paradoxo que governa a existência - a vida e a morte -, motivou a interrogação; a ausência de respostas provocou a consciência da tragicidade da vida.

A interrogação sobre o destino do Homem está sempre presente nos poemas de Pessoa, impregnando-os de uma nostalgia persistente, reflexo imutável do reconhecimento dos limites que caracterizam a liberdade humana e da fatalidade que atingirá o Homem, enquanto ser transitório. É, aliás, esta forma de estar no mundo que o leva a distanciar-se dos acontecimentos e a escrever:

"Assisto ao que me acontece, de longe, desprendidamente, sorrindo ligeiramente das coisas que acontecem na vida.

(...) Eu não tenho rancores nem ódios. Esses sentimentos pertencem àqueles que têm uma opinião, ou uma profissão, ou um objectivo na vida. Eu não tenho nada dessas cousas."

e

"O meu pior mal é que não consigo nunca esquecer a minha presença metafísica da vida."

Foi este o objectivo de Fernando Pessoa - a sua vida foi uma incessante procura de respostas (o que o levou a tentar encontrar no ocultismo aquilo que a religião não lhe podia facultar); a sua poesia é um caminho para, através da arte, reencontrar uma linguagem primordial, esquecida pelos homens e que o poeta acreditou que o colocaria mais perto da Verdade.


A nostalgia da infância

Uma das linhas temáticas da poesia de Fernando Pessoa (ortónimo) é a saudade de um tempo feliz, aliado à inconsciência e à unidade.

A infância corresponde a um período em que o ser humano inicia o seu percurso de conhecimento do ser, da realidade. Contudo, esse processo implica a presença de elementos referenciais que, no caso pessoano, assumem uma dimensão metafísica.

Em Pessoa, a infância é, muitas vezes, representada através de um universo mítico-simbólico ligado à imagética infantil dos contos e das lendas. Atentemos no poema "Não sei, ama, onde era", no qual encontramos esta associação.


Não sei, ama, onde era,

Nunca o saberei...

Sei que era Primavera

E o jardim do rei...

(Filha, quem o soubera!...).


Que azul tão azul tinha

Ali o azul do céu!

Se eu não era a rainha,

Porque era tudo meu?

(Filha, quem o adivinha?).


E o jardim tinha flores

De que não me sei lembrar...

Flores de tantas cores...

Penso e fico a chorar...

(Filha, os sonhos são dores...).


Qualquer dia viria

Qualquer coisa a fazer

Toda aquela alegria

Mais alegria nascer

(Filha, o resto é morrer...).


Conta-me contos, ama...

Todos os contos são

Esse dia, e jardim e a dama

Que eu fui nessa solidão.

É de salientar, neste último poema, a presença de duas vozes, que representam o mundo da infância e o mundo da idade adulta. A primeira voz é a da "princesa", através da qual o poeta expressa o sonho de ter sido feliz; uma segunda voz, ligada à "ama", assume a dimensão da consciência da idade adulta, unida à dor de pensar e à perda.

Fernando Pessoa reproduz a saudade de um tempo passado, um tempo mítico, metaforicamente ligado à Idade de Ouro. A nostalgia da infância, na poética pessoana, coincide com a saudade de um tempo feliz, aliado à inconsciência e à unidade desaparecida na idade adulta.


No poema "Pobre velha música", a música remete para um tempo passado, conotado com uma infância que o poeta imagina ter sido feliz. O "olhar parado" do sujeito poético prende-o a esse tempo remoto, o que provoca as suas "lágrimas", originadas pelo sentimento de perda inexorável e de infelicidade que o dominam no presente.

Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.


O desejo de regressar a um tempo anterior, conotado com a felicidade que enraíza no tempo mítico de uma infância imaginada - o poeta questiona-se em relação ao facto de ter, efectivamente, vivido esse tempo de alegria -, está presente em muitos poemas de Fernando Pessoa ortónimo.


No poema "Quando as crianças brincam", o sujeito poético assume a felicidade de um tempo construído a partir do presente, a partir da audição das crianças que brincam.


Quando as crianças brincam
E eu as ouço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar

E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no meu coração.





Sem comentários: