sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Fernando Pessoa - teoria do fingimento


A poética do ortónimo

Vivendo sobretudo pela inteligência e imaginação, o discurso poético pessoano afirma-se a partir da "aprendizagem de não sentir senão literariamente as "cousas"", ou seja, em fingir sentimentos, até mesmo os que verdadeiramente vivenciamos.
Pessoa parte da negação da ideia romântica do poeta como um confessor, como alguém que se desnuda aos olhos do leitor, e filtra tudo através da inteligência. Em Pessoa tudo é inteligência e todo o texto é produto da imaginação. No momento de produção literária/poética, o poeta finge sentimentos, emoções, não deixando, no entanto, de haver verdade, só que essa verdade, essa sinceridade é artisticamente trabalhada.


Arte poética pessoana - Teoria do fingimento

Os poemas "Autopsicografia" e "Isto" instituem a verdadeira Arte Poética de Pessoa, iniciando uma aprendizagem do não sentir, que sobrepõe o conhecimento racional ao afectivo. O poema torna-se, assim, uma construção de sentido e não uma construção sentida, porque se baseia na palavra que é a abstracção suprema, nas palavras do próprio Pessoa, "uma intelectualização da sensibilidade". O poeta, um ser que se completa para além da percepção sensorial, é alguém que recorre a truques verbais para a construção de verdades poéticas. Os poemas que melhor ilustram esta arte poética pessoana, que se baseia no fingimento, são:

"Autopsicografia" - Este texto define o processo de criação poética pessoana:
  • o sujeito poético parte da asserção / afirmação "O poeta é um fingidor", identificando "poeta" e "fingidor", transferindo o acto de criar poesia da esfera das emoções reais / vividas para a esfera das emoções fingidas / pensadas;
  • este fingimento poético é tão extremado que leva o "eu" lírico a "fingir" emoções que realmente "sente" - a poesia resulta, assim, do fingimento da dor e não da sua vivência (grande revolução na concepção tradicional de poesia);
  • fingir é "fazer um desvio pela inteligência", submetendo os sentimentos e as emoções ao espírito analítico;
  • o processo de criação poética não é exclusivo do "eu" lírico (que apenas finge emoções), mas alarga-se ao leitor - "os que lêem o que escreve";
  • o leitor, também ele interveniente no processo de criação, sente na "dor lida" (poema), uma outra dor: uma dor que não é nem a vivida, nem a fingida pelo sujeito poético, mas uma outra construída por ele próprio - "Mas só a que eles (leitores) não têm" - esta dor também ela fingida;
  • finalmente, o sujeito poético conclui, recorrendo à imagem das "calhas de roda" e do "comboio de corda", que a criação poética resulta de permanente interacção entre o coração e a razão, entre o sentir e o pensar;
  • torna-se, deste modo, evidente a supremacia da razão sobre as emoções no acto de criar - processo de intelectualização das emoções assumido por Pessoa.
"Isto" - O poema dá resposta à perplexidade suscitada pelas reflexões inovadoras presentes em Autopsicografia:
  • o sujeito poético afirma que não há mentira no processo de criação poética;
  • concebe um outro modo de criar poesia, sentir "Com a imaginação" - a emoção é filtrada pela imaginação;
  • afirma, metaforicamente, que a realidade que sonha ou vive é ainda rudimentar - "um terraço / Sobre outra coisa ainda";
  • sublinha que a verdadeira beleza reside nessa "coisa linda" - o acto de escrever;
  • recusa o acto poético como expressão exclusiva das sensações;
  • remete para o leitor o sentir.
"Tenho tanto sentimento" - O sujeito poético auto-caracteriza-se como um ser dominado pelo vício de pensar:
  • obsessão pela racionalização, embora tendo, por vezes, a ilusão de que é sentimental;
  • a oposição sentir / pensar desenvolve-se ao longo do poema através dos pares: vida vivida / vida pensada; vida verdadeira / vida errada - pares de opostos que explicitam a fragmentação do "eu";
  • a oposição entre o sentir e o pensar é marca distintiva da arte poética pessoana ("Autopsicografia" e "Isto").

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