quarta-feira, 9 de maio de 2012

O Pingo Doce e o pingo amargo




1. Obviamente que não sei quanto facturou o Pingo Doce a 1 de Maio. Mas vi referências que situam o encaixe financeiro, em poucas horas, entre os 70 e os 90 milhões de euros. Imaginemos que o grupo recorria a emissão obrigacionista a três anos, para se financiar por igual quantia. Se tomarmos por referência as recentes iniciativas da Semapa e da EDP, a operação teria um custo nunca inferior a 17 milhões de euros. Não tenho elementos que me permitam calcular o valor da mercadoria que saiu das prateleiras, com prazos de validade próximos da caducidade. Mas, certamente, não será despiciendo. Não fora a campanha, essa mercadoria, que agora vai caducar em casa dos clientes, constituiria para o grupo uma perda total. Melhor foi, portanto, “passá-la” a 50 por cento. Volto a não saber quanto gasta o Pingo Doce em publicidade. Mas sabemos todos que é muito. Pois bem: quanto custariam a cascata de notícias, em horário nobre, de todas as televisões, as referências das rádios e o espaço dos jornais, servidos ao grupo a custo zero? Não sei, uma vez mais, quantificar o valor da vantagem comercial obtida com esta manobra predadora. Mas há perguntas que me ocorrem. Que impacto terá isto sobre o pequeno e agonizante comércio de bairro, face ao que o povo acumulou para meses? Quantos milhões perdeu Belmiro de Azevedo a favor do benfeitor Soares dos Santos? Quantos milhões vão perder os produtores, quando os preços forem esmagados pelo volume da operação de reposição de “stocks”?

2. Fora o altruísmo o motor que fez mover Soares dos Santos e a sua inteligência teria encontrado alternativas que nos poupassem ao pingo amargo que o Pingo Doce pôs a nu: a incivilidade de muitos. Ao ver bacalhaus pelo ar, polícia a dirimir tumultos e hospitais a receber vítimas de confrontos entre consumidores, voou-me o espírito para o 11 de Março. Não o nosso. O do Japão de 2011: sismo, “tsunami” e desastre nuclear; 200 mil refugiados, 13 mil mortos e 15 mil desaparecidos; 45 mil edifícios destruídos, 140 mil danificados e 200 mil milhões de euros de prejuízos. E? Quando a catástrofe chegou, cada cidadão sabia o que fazer. E fez. Cinquenta funcionários de Fukushima, sacrificando a vida em benefício do colectivo, permaneceram voluntariamente na central nuclear, para que a água do mar fosse bombeada para os reactores e a catástrofe não crescesse. Nas filas intermináveis para acesso a água e mantimentos, não se viu um atropelo ou a mínima algazarra. Só silêncio, consternação, paciência e dignidade. Não houve saques em lojas. Outrossim, cada japonês comprou o estritamente necessário para que os bens chegassem para todos. Os restaurantes baixaram os preços, respondendo de modo inverso à lei da oferta e da procura. Quando num supermercado a electricidade faltou, os clientes devolveram às prateleiras o que tinham em mãos e saíram ordeiramente. 

3. Entre nós e eles a diferença chama-se educação na família e instrução na escola. A sustentabilidade (como agora é moda dizer) do estado social é motivo actual para pôr em causa a escola pública. No início da sua actividade, como líder do PSD, Passos Coelho trouxe esta questão à discussão política, de modo mais explícito inicialmente, por forma corrigida e mais cautelar logo a seguir. Como é habitual, evocou a demografia: o Estado social não suporta a gratuidade desses serviços, disse, numa pirâmide etária com tendência para se inverter (menos jovens na base, mais velhos no vértice). Quem assim pensa, espere pelos resultados do que Passos e Crato estão a fazer à escola pública. Incensam a autonomia, mas reforçam o centralismo. Seraficamente, erigem ensino de primeira para poucos, financiado por todos, e ensino de terceira para a plebe, cada vez mais baratinho. Convenientemente, acolhem o caciquismo autárquico. Criminosamente, criam “unidades orgânicas” com 9 mil alunos, um só conselho pedagógico sem pedagogia possível, um director inchado que não vai dirigir, asfixiando, a decreto, a conjugação de esforços que só a proximidade permite.

A necessidade de evitar a bancarrota determinou entre nós uma espécie de estado de inevitabilidade e de necessidade nacional que impede, pela urgência que nos impuseram e pelo acenar insistente da tragédia grega, que discutamos outras vertentes possíveis de análise. Por que razão o peso dos problemas financeiros é menor em países com maior capacidade redistributiva da riqueza produzida? Por que razão assistimos, impávidos, à sistemática diminuição do investimento em educação, coexistente com a intocabilidade das rendas pagas pelo Estado a grupos económicos, gananciosos e apressados, com quem contratou parcerias ruinosas? Por que razão uma economia incivilizada passa pela crise sem que a possamos pôr em causa? 


Santana Castilho 

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