sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O sono eterno



Não nasci aqui. Não nasci nesta casa. O meu pai era Presidente da Junta, alfaiate e sacristão e entendeu fazer desta aldeia, desta casa, da nossa casa, o local do meu nascimento. A minha mãe era costureira, bordadeira e mantinha a igreja limpa, encerada e perfumada com mil flores dispostas em jarras. Os meus pais trabalhavam em casa e na igreja.
O meu irmão quase nasceu no táxi. O meu pai nem precisou de decidir o local de nascimento do meu irmão, porque ele nasceu logo ali, em casa, mesmo antes do táxi chegar.  Sempre foi muito apressado... o meu irmão... e ainda é!
O nosso espaço era a casa, a estrada em frente e a igreja com um adro enorme à volta cheio de árvores frondosas e uma quantidade de campas rasas onde os defuntos dormiam o sono eterno. Na altura, não percebia muito bem o que era isso do sono eterno e também não entendia porque se dormia esse sono ali, debaixo de lajes numeradas. Um dia perguntei à minha mãe se, quando as pessoas do sono eterno acordavam, não ficavam admiradas de não despertarem em casa, na cama, como toda a gente. A minha mãe ignorava e eu insistia sem êxito.
O meu irmãozito e eu tentávamos passar sem pisar as lajes para não acordarmos as pessoas... O meu irmão achava que as pessoas tinham as suas casas ali por baixo. Que escuro deveria ser lá em baixo! Para dormir era bom o escuro! Mas, que faziam quando acordavam do sono eterno? A minha mãe ria-se com um riso pequenino, pequenino assim como nós! 
Não me lembro muito bem da nossa casa. Tinha um quarto, talvez mais. Só me lembro de um quarto e da janela aberta com a cortina a dançar ao sabor da brisa, tinha uma casa de jantar com uma mesa enorme, de alfaiate, cheia de réguas de madeira e esquadros, de tesouras enormes e giz... onde o meu pai riscava, talhava, cortava os fatos feitos por medida. Um guarda-loiça cheio de copos brilhantes, faiscantes, e louça muito bonita e taças de vidro colorido... Havia, com certeza, mais mobília, mas não consigo relembrar. No Inverno, havia sempre uma braseira no meio da casa para aquecer o ambiente...
Havia  a cozinha e havia o quintal e as capoeiras das galinhas, as coelheiras dos coelhos e o pequenino estábulo da ovelha. Morava também ali um porquinho cor-de-rosa. Para mim e para o meu irmãozito, todos éramos uma família. Todos os animais eram baptizados: a Branquinha e a Pedrês eram as galinhas e punham ovos e chocavam-nos e nasciam pintainhos. O Esporão era um galo colorido, muito emproado, lindo, que cantava todas as manhãs para acordar a aldeia toda. Passeava-se pelo quintal, muito senhor do seu bico, era muito corado e dormia no cimo do poleiro de olho nas galinhas. A ovelha Mila balia docemente e deixava que lhe dessemos a comida à boca. O porco Manuel era um molengão e passava o tempo a comer abóboras, beterrabas e couves e a beber grandes goladas de água e a dormir a sesta. Não podíamos brincar com o Manuel. Um irmão dele tinha comido um braço à Maneta, coitada. O meu pai dizia que os porcos não eram de confiança e não nos deixava aproximar dele. A Pedrês andava a chocar ovos e nós, todos os dias, íamos espreitar e palpar os ovinhos quentinhos. Tinha dez ovos. Se vingassem, dizia a minha avó, teríamos  dez pintainhos fofinhos e amarelinhos. O meu irmão queria dar logo um nome aos pintos, mesmo ainda dentro dos ovos. A São, uma amiga da mãe, dizia que não podia ser, que dava azar. Quando nascessem é que era e mesmo assim, às vezes, aconteciam desgraças e os pobres morriam e era uma tristeza. Os pintos começaram a furar a casca, a minha mãe chamou-nos para vermos o milagre da criação e da sobrevivência... Lá estava  um buraquinho e a mãe, com a unha, abria um bocadinho mais e quando o buraco já estava grandinho, a mãe puxava o pintainho pela cabeça molhada e deixava-a de fora... Por fim, os pintos felpudos brancos e amarelos deixaram as cascas de lado e piavam. O meu irmão agarrou um animalzinho trémulo com as suas mãozinhas minúsculas e deu beijinhos ao pintainho e apertou-o contra o peito... Era tamanha a ternura que o animalzinho estrebuchou e deitou as tripas finas pelo ânus. Adormeceu, dizia baixinho o meu irmão, deitando o bichinho no ninho. E saía a correr para contar à mãe que o Paulinho estava a dormir. A dormir o sono eterno!
Muitos pintos morreram de excesso de carinho meu e do meu irmão. Sobreviveram cinco: A Maria, o José, a Fátima, o João e a Joana.


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