quarta-feira, 10 de junho de 2015

Porque hoje é o meu dia e o de todos os portugueses



Apresento-me...

         O meu nome é Luís Vaz de Camões e vivi em Portugal no século XVI. Aqueles que mais tarde viriam a ocupar-se da minha vida (os meus biógrafos) viram-se em sérios embaraços para sabê-lo, visto que não conseguiram obter documen­tos seguros a meu respeito. Muitas histórias se inventaram sobre mim, mas, como diria mais tarde, no século XX, um famoso cineasta, de origem irlandesa e de nome John Ford, "quando a lenda ultrapassa a realidade, publique-se a lenda…”
         De qualquer modo, vou, para que a minha apresentação seja mais completa, dizer-vos que nasci em Portugal, em Lisboa, por volta de 1524.
         A minha família era pobre e pobre vivi sempre. No entanto, e porque, mesmo pobre, a minha família pertencia à nobreza, pude ser educado no contacto com os clássicos gregos e latinos, e conhecer toda a literatura e civilização desses dois povos. Li, nomeadamente, os livros que considero os mais importantes do Mundo: os poemas de Homero sobre a Guerra de Tróia - A Íliada - e sobre as aventuras do sábio Ulisses - A Odisseia - e o poema de Virgílio, narrando as navegações de Eneias - A Eneida. Aprendi também muitas lendas ligadas aos Gregos e Romanos, como a lenda dos Argonautas, navegadores que procuravam encontrar o velo de ouro. E fiquei a saber a mitologia dos Gregos e Romanos e, portanto, as histórias dos seus deuses e deusas. Gostei também de ler coisas relacionadas com o Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda, bem como sobre Carlos Magno e os Doze Pares de França. Pude conhecer igualmente outros livros e autores estrangeiros muito admirados e lidos no meu tempo, como Ariosto e Petrarca e gostei particularmente dos sonetos deste último.
         Para além da leitura, Ocupava eu o meu tempo em distracções próprias de Jovens, como namorar as cachopas bem lindas do meu tempo, em Coimbra, segundo dizem, e, mais tarde, em Lisboa. Os meus biógrafos haveriam de inventar-me muitas namoradas, nomeadamente entre as donzelas e damas da Corte e mesmo amores por princesas. Não sou eu quem vos dirá se é verdade ou mentira tudo quanto pensaram descobrir porque, aqui para nós, até fico vai­doso de saber de tantos namoros... A verdade é que nem sempre fui muito bem comportado e vi-me envolvido em brigas. É que eu era bom espadachim e ai de quem se metesse comigo!... Estive preso por diversas ocasiões, nomeada­mente em Constância  dizem os habitantes dessa linda terra junto ao Tejo. Mas também sobre isso não há certezas e eu, mesmo que me lembrasse, não iria desapontá-los.
         Frequentei também Os serões da Corte e fiz muitos versos às damas; mais tarde seriam publicados com o título de Lírica. Ganhei fama, adeptos (sobretudo entre as damas) e inimigos, gente invejosa do meu êxito e do meu talento de poeta lírico.
         A determinada altura fui para soldado, profissão própria de nobres, e fui com­bater os Mouros para o Norte de África, zona em que o meu Rei queria obter territórios. A vida na tropa não foi nada boa, porque mesmo quando a guerra é justa - e eu até achava as guerras contra os Mouros justas e santas, pois acreditava serem boas  para o meu Rei e para poder levar-se a verdadeira reli­gião a África e ao Oriente, - o perigo é grande de morrer jovem ou de ser ferido. E foi isso mesmo que sucedeu: fui ferido em combate e perdi para sem­pre um dos meus olhos. Eu até era um rapaz jeitoso e com sorte junto das moças, mas algumas, por maldade, ou simplesmente porque eram tontas, tro­çavam de mim por ser cego de um dos olhos, chamando-me "cara sem olhos” Vingava-me, fazendo versos e até fazendo humor sobre a minha infeli­cidade... Como estes:

Sem olhos vi o mal claro
 que dos olhos se seguiu:
pois cara sem olhos viu
 olhos que lhe custam caro.
 De olhos não faço menção,
 pois quereis que olhos não sejam;
 vendo-vos, olhos sobejam,
 não vos vendo, olhos não são.

         Tempos depois, fui enviado para a Índia, dizem alguns que como castigo por mau comportamento, outros que por vingança de algum rival por mim vencido nos amo­res ou nas brigas. Não me ralei. A verdade é que senti um enorme prazer em poder repetir a viagem que tantos portugueses já tinham feito antes e que Vasco da Gama, para mim o mais importante herói de Portugal, fizera pela primeira vez em 1498. Gostei de conhecer a costa africana, o Oceano Atlântico e também o Índico e de ir prestar serviço para Goa, capital do Império Português do Oriente. Claro que eram viagens difíceis, mas gostei muito de poder conhecer novos céus, novos climas, novos usos e costumes tão diferentes dos nossos, novas formas de arte, outras religiões e mulheres lindíssimas como a Bárbara e a Dinamene, de beleza tão diferente das mulheres europeias, duas cativas que de mim fizeram para sempre um cativo seu. Sobre a primeira escrevi eu

Aquela cativa
Que me tem cativo
Porque nela vivo
Já não quer que viva

         Tal como tinha acontecido em Lisboa, também por estas bandas me não falta­ram inimigos... e, a certa altura, fui enviado para Macau, com um cargo oficial. Gostei de estar nesse território chinês ocupado por portugueses. Diz a lenda que em Macau escrevi os meus Lusíadas numa gruta adequada ao trabalho de fazer poesia... Acusaram-me de fraudes. Estava inocente, mas tive de regressar a Goa, em cuja prisão passei dias amargos... Por sinal, da minha estadia na pri­são existe um retrato.
         No Oriente fui igualmente vítima de um naufrágio em que quase perdi a vida e no qual salvei a custo Os Lusíadas. Esse naufrágio no rio Mecom deixaria em mim uma enorme tristeza e um grande desalento. É que nele morreu a minha Dinamene, que recordaria sempre com saudade e mágoa. À sua recordação dediquei poemas muito sentidos. É que nunca mais me foi tão doce a vida, após a perda da minha amiga, tão jovem, tão bela, a quem eu tanto amava e que me amava tanto a mim. Sonho muitas vezes com ela, vejo-a, chamo-a pelo nome..

Dina!...

e antes que diga mene acordo e vejo
 que nem um breve engano posso ter.

         Regressei algum tempo depois a Portugal e à minha Lisboa. Ao contrário de tantos que na Índia fizeram fortuna rápida, regressei mais pobre do que quando tinha saído. Tanto, que só tive dinheiro para pagar a viagem até à Ilha de Moçambique. Por lá fiquei, até que amigos que vinham da Índia me pagaram o resto da viagem.
         Em Lisboa aguardava-me, ansiosa, a minha querida mãe, uma das muitas que tinham visto partir os filhos com amargura e medo de os não voltar a ver, como conto no meu livro Os Lusíadas. Vinha fraco, pobre e doente. Tive, felizmente, o apoio de um escravo que veio comigo. Melhor direi, de um grande amigo, o António, mais conhecido por Jau, por ser natural da ilha de Java. Muito lhe devo pela amizade e até porque muitas vezes pedia esmola para eu poder sobreviver. Tratei de conseguir a publicação do meu livro, em que procurei ser um digno continuador do génio de Homero e Virgílio. Não era fácil publicar um livro em Portugal. Os Portugueses não ligavam muito à arte e à poesia, o que é pena. Pedi audiência ao Rei, um jovem simpático que prometia ser valente -  D. Sebastião         - e pedi-lhe que me permitisse ler-lhe o meu poema - que aliás lhe dedicava. Se ele aceitasse ouvir-me, haveria de ver que era muito mais importante ser rei dos Portugueses do que ser rei do Mundo.
     O  Rei aceitou ouvir-me longamente e os seus olhos brilhavam de entusiasmo ao ouvir a história do povo lusíada, ou português, bem mais importante que as muitas histórias dos antigos, já cantadas por Homero e Virgílio. Após a leitura, agradeceu-me e prometeu pagar-me uma pensão razoável até ao fim dos meus dias. Nem sempre a pensão chegou, porque os reis são bem mais rápidos a prometer do que a cumprir algumas das suas promessas... Também é certo que o jovem rei estava envolvido na preparação de uma expedição militar a Marrocos (mal ele sabia que aí haveria de perder a vida...), e essas coisas de guerras exigem muito dinheiro...
         Seja como for, e isso é que importa, o meu livro foi publicado em 1572 e com tanto êxito, que logo nesse ano houve uma segunda edição. É bom que eu diga aos meus jovens leitores do século XX que, nessa altura, pouca gente sabia ler. De mim ficaram os meus versos, as composições líricas, em que trato de assuntos sentimentais, emotivos; algumas peças de teatro - EI-rei Seleuco, Anfitriões, Filodemo. Mas a minha melhor e mais conhecida obra é, de facto, Os Lusíadas.

         Já chega de tanto falar de mim. Afinal, se hoje sou conhecido em todo o Mundo, tal se deve aos meus poemas e não à minha vida como pessoa. E, se a vida me não correu muito bem, depois da minha morte tornaram-me o símbolo da nossa pátria e daquilo que há de melhor no povo português. Tanto que, mais tarde, transferiram o que restava do meu corpo para o Mosteiro dos Jerónimos, para um túmulo junto ao de Vasco da Gama, onde hoje sou visitado por muitos portugueses e estrangeiros, que me põem umas flores de vez em quando. Muitos desses visitantes, se calhar, nunca me leram, mas ouvem falar de mim como um dos grandes poetas da humanidade e como símbolo da nossa pátria. Por isso, a data da minha morte, 10 de Junho, é assinalada como dia feriado: o Dia de Portugal.

Amélia Pinto Pais

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