sábado, 12 de dezembro de 2015

Não sei ser triste a valer



Não sei ser triste a valer
Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma 
E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão 
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,
Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E ambos nos vêm calcar.

'Stá bem, enquanto não vêm
Vamos florir ou pensar.



O poema que se inicia com "Não sei ser triste a valer..." é um poema ortónimo de Fernando Pessoa que toca um tema querido à vertente Ortónima da sua poesia - a oposição entre pensar e sentir, ou mais exactamente entre pensar e viver.

A temática é desenvolvida pela análise dialéctica e comparativa, entre o acto de pensar (humano) e o acto de florir (natural). O sujeito poético tenta, na comparação, estabelecer uma linha condutora entre o absurdo de pensar perante o absurdo de florir - ambas as acções serão afinal naturais e semelhantes? Dizendo isto, tira o conteúdo revolucionário do pensar e assemelha-o ao acto simples do florir. Assim pensar, como florir, não tem um significado intrínseco, uma finalidade lógica superior. Pensar é, como florir, uma acção sem significado além do significado que encerra em si mesma - esgota-se portanto no seu próprio acto, não tem um seguimento e uma conclusão e aí reside o seu absurdo.

A mudança entre o tom interrogativo (1.ª estrofe) e exclamativo (2.ª estrofe), que passa depois para um tom declarativo é de simples análise.  O sujeito lírico tenta nas duas primeiras estrofes estabelecer a sua comparação - a linha condutora, pelas evidências e semelhanças entre pensar e florir. Por isso ele primeiro interroga e depois afirma para si mesmo a realidade. As restantes estrofes são já produto de uma conclusão do eu - são, à sua maneira, um acto de pensar que também se extingue em si mesmo e em que "se pensa o pensamento". Por isso o tom declarativo, final, de conclusão, que dá lógica continuação às duas primeiras estrofes.

Na quarta estrofe para reforçar a  ideia que o pensar, tal como o florir, é um acto absurdo, sem final definitivo, o sujeito poético recorre a uma imagem forte - o espezinhar da flor pelos pés de alguém é o mesmo que acontece com o pensar. Ou seja, quem pensa é esmagado pela vida, porque a vida não é para aqueles que pensam, é precisamente para aqueles que ignoram o pensamento e apenas vivem. Pensar é sofrer. Todas as análises e conclusões são infrutíferas, porque no final são espezinhadas pelo destino, pelos deuses.

Características do Pessoa ortónimo presentes neste poema:

  • Identidade perdida
  • Consciência do absurdo da existência
  • Tensão sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência, sonho/realidade
  • Oposição sentir/pensar, pensamento/vontade, esperança/desilusão
  • Anti-sentimentalismo: intelectualização da emoção
  • Estados negativos: solidão, cepticismo, tédio, angústia, cansaço, desespero, frustração
  • Inquietação metafísica, dor de viver
  • Auto-análise



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