segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Cesário Verde - Deambulismo - Num Bairro Moderno



Para Cesário Verde, ver é perceber o que se esconde na realidade, é captar as impressões que as coisas lhe deixam e, por isso, o poeta percepciona o real minuciosamente através dos sentidos. Ou seja, andando pela cidade, deambulando por espaços físicos vários, o real exterior é apreendido pelo mundo interior do sujeito poético que o interpreta e recria com grande nitidez, numa atitude de captação do real pelos sentidos, dando predominância aos dados obtidos pela visão: cor, luz, recorte, formas, movimento.
A errância pelos espaços da cidade é motivação para escrever.
Os poemas de Cesário que melhor ilustram esta deambulação, esta errância por uma cidade que é sua são:


Num Bairro Moderno

Trata-se da reconstituição do percurso que sujeito poético habitualmente faz para o emprego, para a loja de ferragens do pai.
Este poema de Cesário Verde pode ser considerado uma espécie de paradigma da totalidade da sua produção poética, uma vez que, de uma forma mais ou menos desenvolvida, todos os aspectos essenciais da sua poesia estão nele presentes.
Analisemos este poema, então, começando por fazer referência às duas realidades presentes no texto:
  • a objectiva, construída através da descrição do bairro e das personagens que nele se movimentam: estrofes 1, 2, 3, 4, 5, 6, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 19;
  • a subjectiva, a fuga imaginativa levada a cabo pela visão pessoal do "eu" que vagueia, que deambula pelo bairro: 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 20.
A coexistência destas duas realidades prefigura a poetização do real, uma vez que o sujeito poético se deixa levar pela sua imaginação, construindo um corpo feminino (símbolo de saúde, de fertilidade, mas também de sensualidade) a partir da giga de legumes e frutos, vendo estrelas nas gotas de água que caem do ralo de regador, ou transformando a visão final da hotaliceira e do seu cesto à cabeça numas "grossas pernas dum gigante /Sem tronco, mas atléticas, inteiras".
Esta poetização do real, construída pela imaginação do sujeito poético, inviabiliza algumas teorias segundo as quais Cesário Verde seria um poeta realista. Cesário é, sim, contemporâneo do realismo, sofre influências desse movimento, mas vai além dele. É quase um surrealista antes do tempo, pela dimensão que o imaginário e a transformação poética assumem na sua poesia.

Relativamente à realidade objectiva, assinale-se:

a) o carácter deambulatório (o "eu" descreve o que vê à medida que passeia pelo bairro), cinético e visual da poesia de Cesário:
  • a focagem do plano geral (o bairro);
  • a passagem para a cena particular (o episódio da hortaliceira).

b) a presença do quotidiano visível nas características narrativas do poema:
- tempo: "Dez horas da manhã" (estrofe 1); "ao calor de Agosto" (estrofe 16);
- espaço: "larga rua macadamizada" enquadrada por casas apalaçadas com quartos estucados, paredes de papéis pintados, mesas com porcelanas, jardins com nascentes - bairro burguês (estrofes 1 e2);
- personagens:
  • sujeito poético - frágil, doente. "Com as tonturas de uma apoplexia" (estrofe 3);
  • a hortaliceira: mulher do povo, esguedelhada, magra, feia, doente, enfezadita (est. 5, 6 e 19). A mulher do povo apresentada de uma forma realista, não sujeita a uma metamorfose poética, constitui uma inovação da poesia deste poeta. Esta mulher pobre, feia, "sem quadris", esmagada pelo peso da giga, simboliza também as preocupações sociais presentes na poesia de Cesário Verde, aspectos completamente "revolucionários" para a época;
  • o criado;
  • o pequerrucho;
  • os padeiros;
  • as ménages.
-acção:
  • o deambular do sujeito poético pelo bairro, o encontro com a hortaliceira e a fuga imaginativa a partir da giga. Esta fuga imaginativa é uma micro-narrativa encaixada na narrativa de primeiro grau;
  • o retomar do passeio e a visão final.

Em relação à realidade subjectiva que assume no poema o estatuto de uma narrativa de segundo grau, que integra a fuga imaginativa:
  • o carácter subjectivo / metamorfoseante e surrealista da descrição da giga (est. 7, 9, 10, 11, 12);
  • o simbolismo inerente a esta "fuga": a giga é "um retalho de horta" e, por isso, transmite força, vigor, saúde, vida, poder de transformação, por oposição à cidade, representada pelo sujeito poético e pela hortaliceira, conotada com dor, sofrimento, e, no limite, morte;
  • a presença dos binómios campo/cidade, vida/morte estruturantes da poesia de Cesário Verde e associados ao mio de Anteu. Só o contacto com o real, mas sobretudo com o campo, com a terra, confere ao homem força e vitalidade;
  • o visualismo (aspectos pictóricos) quer na descrição da rua, quer na descrição da giga, criado a partir das referências à:
  1. luz - "E fere a vista, com brancuras quentes, / A larga rua macadamizada.";
  2. cor - "Ou entre a rama dos papéis pintados";
  3. forma - "Achava os tons e as formas";
  4. movimento - "Sobem padeiros";
  • a presença dos principais aspectos do estilo poético de Cesário Verde:
  1. emprego de um vocabulário pragmático, preciso, concreto e corrente - "Se ela se curva, esguedelhada, feia";
  2. utilização inusitada do adjectivo - "Atira um cobre lívido, oxidado";
  3. emprego de sinestesias - "brancuras quentes";
  4. recurso a sensações / verbos sensitivos: visão ("matizam"); tacto ("fere"); olfacto ("Bóiam aromas, fumos de cozinha"), ("hortelã que cheira"); audição ("Toca, frenética, de vez em quando"); gosto ("Como de alguém que tudo aquilo jante");
  5. valor expressivo dos diminutivos - "pequenina", "bracinhos", "enfezadita";
  6. emprego de estrangeirismos - "rez-de-chaussée", "ménages".
in Colecção Resumos da Porto Editora

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